Ofélia quis um dia salvar o mundo. Na sua mente de criança imaginou mil e uma possibilidades. Foi médica, bombeira, polícia, heroína de banda desenhada, bióloga, geóloga, cientista louca, criminologista, psicóloga e activista. Ofélia quis um dia salvar o mundo, mas o raio do mundo não a salvou a si. Os dias foram por si passando, e, sem que desse conta, consigo os sonhos foram levando.
Ofélia agora observa apática o seu armário ao final da noite. Tem que decidir o que vestir para amanhã não se atrasar para o trabalho. Tem hora certa para dormir e hora certa para acordar. Todos os dias são iguais. Todos os dias são cinzentos. Tão cinzentos como a parede do cubículo onde trabalha intrincadamente colaborando, sem saber bem como, para a manutenção das engrenagens burocráticas de um Adamastor corporativo. Meio anestesiada, Ofélia despeja diariamente naquele cubículo cada gota do que foi, do que é, e do que alguma vez aspirou ser. Quando termina, volta sem vida a casa, seguindo o enxame de carros que se junta todos os dias na mesma direcção, e sem vida passa indiscriminadamente pela cozinha e senta-se só em frente a um ecrã onde alguma coisa está a acontecer, mas há muito que deixou de se preocupar com isso.
Pelo meio da anestesia e do sono, uma réstia de sanidade agita-a por momentos da penumbra. Pergunta-se como chegou ali, mas não obtém resposta. Olha à sua volta, e tenta fazer sentido de tudo isto até que os seus olhos caem sobre o relógio da sala. Por Deus! Deixou-se dormir e ainda não decidiu o que vestir para amanhã.